terça-feira, 7 de setembro de 2010

Dia 4: Algures - Avignon?


Começa o dia realmente cedinho, aos primeiro raios da manhã. Finalmente acordamos efectivamente a horas. Muito devido às camas confortáveis onde estávamos. Não chove já, o que não é mau. Seis da matina estamos a tomar o pequeno almoço, aganhar forças para empurrar a Harley a ver se aquilo pega e ainda faz os cerca de 80km pelo menos que precisamos. Depois de algum esforço e algum suor, o trovejar bruto do motor faz-se ouvir, e um sorriso de esperança surge novamente nas faces dos viajantes. É equipar rapidamente, antes que aconteça alguma desgraça. Mete-se Avignon no GPS, e siga viagem. Estradas secundárias, quase desertas, levam-nos pelo caminho, em que vai ameaçando chover. Não se pára, com medo de depois não se conseguir começar a andar novamente.

Já a chegar a Avignon, as nuvens ameaçadoras descarregam tudo à bruta finalmente em cima de nós. Felizmente continuávamos com os fatos de chuva bem guardados e protegidos, não se fossem eles molhar...
Sem a morada certa do concessionário da Harley que procurávamos, entramos numa oficina automóvel para nos abrigarmos um pouco e tentar decidir a nossa vida. O eco da Harley a trabalhar dentro da oficina não era simpático, mas não se podia desligar. O dono lá veio ter connosco para nos expulsar dali, mas só o conseguiu fazer depois de falar com a nossa comunicadora oficial e lhe explicar onde era o concessionário que procurávamos. Felizmente não é longe, e metemo-nos novamente à estrada.

Seguindo as indicações perfeitas que nos haviam sido dadas, atravessamos a cidade, contornamos as muralhas, pára de chover, e eis que chegamos finalmente ao concessionário. O que interessa é que cá conseguimos chegar, e que a moto fez a viagem até aqui, apesar dos ameaços de se querer ficar pelo caminho... Tudo fechado, é normal, só devem abrir às nove, e ainda falta quase um quarto de hora.

Ou então não.

Um olhar mais atento leva-nos à conclusão que afinal aquilo está fechado desde Junho. Fantástico! A nossa tradutora lá consegue perceber que mudaram de instalações para 12 km atrás... Exactamente onde nós passámos antes de chegar a Avignon, mas que não vimos por causa da carga de água que começou a cair mais ou menos nesse local.

Um cigarrito para ganhar coragem, uma oração às divindades motorizadas, e empurra a Harley outra vez, pedidndo-lhe só mais um esforço... E arranca! Toca de meter em cima das motos, e seguir para Rocheford du Gard, onde estão as novas instalações. Se ela aguentou já os 80km até aqui, mais 12 não é nada.

Ou então não.

Oito km é que não eram nada, 12 já era demasiado puxado, porque a bateria resolve entregar a alma ao criador a meio duma das ruas principais de Avignon. A isto se chama morrer na praia... Ou na avenida em frente ao Grand Hotel, também serve. Tão perto e tão longe! Encosta-se a moto no passeio, fazem-se contas à vida. A Beta, a nossa poliglota de serviço, uma vez mais segue na moto do Matos, e debaixo de mais uma chuva torrencial, mas com os fatos de chuva ainda bem guardados, a ver se não se molham, vão até ao concessionário, a ver se:

a) aquilo existe realmente
b) se podem receber a moto
c) se têm reboque para poderem vir buscar a moto
d) se há cerveja algures nas imediações para afogar mágoas

Não necessariamente por essa ordem de importância.

Três de quatro não é mau. Não há reboque. Sem crise, chama-se a assistência em viagem. Quase dez da manhã, parado na rua principal mais a Denise a fazer companhia, liga-se para a seguradora. Conversa práqui, conversa práli, desliga-se, espera-se meia hora por novo telefonema, bateria do telemóvel a começar também a dar o berro, ah e tal, daqui a uma hora o reboque tá aí. Porreiro, só uma horita mais aqui à seca, menos mal. Avisam-se os outros aventureiros. Badalhocos. Estão esparramados numa esplanada a emborcar cerveja, no tasco da oficina. Mas mais uma horita e já lá tou também.

Ou então não.

Três quartos de hora se passam, já agora à torreira do Sol, encostado à moto, com uma noite de sono mal dormido e uns mil e quinhentos km em cima, os olhos começam a fechar um bocado. Até que vejo um carro da polícia a encostar na estrada, do meu lado direito, e a sair um bófia para o meio da estrada. Querem ver que me vieram buscar? Do meu lado esquerdo, aparece outro. Mesmo sistema. Querem ver? O trânsito desaparece. Curioso com o que se está a passar, levanto a cabeça, e escuto muito ao de longe, uns barulhos esquisitos. Parece alguém a berrar, muito lá ao fundo... Muitos alguéns. Que se vão aproximando devagar, à medida que os minutos passam. O volume vai aumentando. Ao fundo, começo a ver uns panos a aproximarem-se. Atrás deles, gente. E mais gente. E cada vez mais gente. Mesmo muita gente. A berrar cada vez mais alto. Palavras de ordem.

    - "SARKHOZY, VAI LEVAR NO PIPI!!!"

Ou algo muito parecido com isso. Porra. Uma manif. Vim parar no meio do percurso duma manif. Tanto sítio para a moto parar, e vai parar exactamente na única porra de rua cortada desta porra desta terra, numa porra de dia de manif. Porra!!! São mais cás mães, não param de vir, não param de gritar!!! O telemóvel toca. É o gajo do reboque, a perguntar se afinal pode vir só depois do almoço, porque não consegue passar até onde eu estou, porque a rua está cortada. A sério? E novidades?! Porra. Um telefonema prós outros dois, que continuam sentados na esplanada a emborcar cerveja, a avisar que afinal vai demorar mais um bocado. Dizem para eu não me preocupar, que ali há muita cerveja para enquanto eles esperam. Fantástico. E onde eu estou, nem uma porra dum cafezito.

Mais três horas se passam de berraria e multidão, até que finalmente o ultimo desaparece, e o trânsito é aberto novamente. Mais meia hora até chegar o reboque, e os outros dois, que por solidariedade vieram ver o que se passa. Chegam ao mesmo tempo. Siga de enfiar a moto no reboque, e siga para a oficina. Aquilo é enorme, a maior que já vi, motos a dar cum pau na loja, peças por todo o lado, espaçosa, e uma oficina enorme também, aparentemente muito bem apetrechada, com uns cinco ou seis mecânicos lá dentro. Há-de-me sair do couro, já percebi, mas tenho a sensação de que vai ser bem tratada e rapidamente.

Deixa-se a moto com quem percebe da coisa, e vai-se almoçar ali ao tasco da Harley, que tem bom aspecto e boa comida. O tasco é porreiríssimo, todo decorado com motivos de motos, e especialmente, Harley, pois claro. Um franguito esquisito, uma batata do tamanho do meu punho, uma vinhaça à maneira, um docinho de caramelo do Lidl, um Jack Daniels e um café para adoçar a boca, e siga para a oficina para ver o diagnóstico.

Alternador e regulador de corrente. Mais uma despesa, sem stress, o que eu quero é a coisa resolvida rapidamente para poder seguir viagem. Através da minha fiel intérprete, lá dou ordem aos gajos para meterem isso novo, o mais rápido possível.

    - "Ah, e tal, não temos disso em stock, temos que mandar vir, aqui não se faz stock de material"

Ah e tal não temos disso em stock?! Como não?! São cousas fundamentais a ter em stock, é do que mais problemas dá nestas motos!!!  Prontes, mandem lá vir disso então, rapidamente, que eu tenho ainda muito km para fazer. O pânico instala-se então quando me dizem que três a quatro dias e têm cá as cousas. Três a quatro dias?! Num país com sei lá quantas motos, com um concessionário em cada terreola, e não conseguem meter cá isso de um dia pró outro?! Tou fornicado!!!

Num raro laivo de inteligência, como último recurso, resolvo telefonar ao meu mecânico em Lisboa. Lá lhe explico a situação, e ele lá tem regulador e alternador. dou-lhe a morada, e digo para mandar isso por UPS, Fed Ex, Correio Azul, Verde, Vermelho, Castanho, Pombo Correio, seja lá o que for mais rápido, mas a ver se cá está amanhã de manhã. Uns minutos depois liga-me de volta. Vem por UPS, e amanhã antes do meio dia está cá.

Os franciús da oficina desconfiam, bastante, e querem ver pra crer. eu digo para irem desmontando o que for preciso, que quando chegar o material amanhã é só enfiar. Ficamos despachados da oficina por hoje. Para ajudar à festa, o Matos repara que tem o pneu traseiro a rasgar. Mais uns km e acaba por rebentar, o que talvez não seja assim tão agradável como isso. fica de se tratar disso amanhã, agora é ir arranjar sítio para ficar. Felizmente do outro lado da estrada, há um Fórmula 1, e é mesmo ali que a gente fica.

Check in feito, uma banhoca e umas horitas de sono numa cama, que há muito não sabíamos o que era isso. Acorda-se, ataca-se um jantarzinho num dos quartos, mais enlatados, sandes e o que resta. Decide-se que afinal os enlatados não prestam mesmo. Cá fora estão uns gatitos, que carinhosamente chamamos de miaux, para eles perceberem. Eles miam em francês. Deliciam-se com os restos dos enlatados abertos que nem conseguimos comer. Mais um cigarrito e dois ou três dedos de conversa, e temos mais um dia feito. Amanhã é que vão ser elas, a ver se a moto está pronta, a ver se chove um bocadinho menos, e a ver se a gente consegue recuperar alguns km, que começa a tornar-se grave para chegarmos a Faaker See na sexta feira... Hoje foram 100km, com o andar prá frente e pra trás em Avignon.

Mas hoje foi o primeiro dia que cumprimos o objectivo a que nos propusémos no início do dia. Também, mal fora...

Amanhã é dia de ter fé.

 Legend's Valley pró repasto

 A gente pede o menu, e trazem-nos o menu
 O caramelo do Lidl

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